No início do mês de maio foi lançada a revista Destroy #17. Trata-se de uma publicação que tem como objetivo divulgar o graffiti em Curitiba. Feita com material gráfico bem elaborado, tem uma tiragem de 300 cópias, cada uma costurada à mão. Com detalhes na capa em serigrafia, a revista conta ainda com uma fotografia revelada em papel na folha de rosto. No exemplar que comprei, fui presenteado com a imagem de uma frase da escritora Giovanna Lima (assina G.L.), pintada em muro:
Foto impressa na revista (papel fotográfico) com imagem de escrito da G.L.
Enfim, uma publicação autêntica e diferente que, para mim, serve para desmistificar um pouco o universo do graffiti, ajudando a vê-lo sem o filtro preconceituoso da mídia tradicional que nada entende da linguagem e da demanda da população jovem que reside nos bairros mais periféricos dos grandes centros.
Para quem, como eu, que não entende muito de graffiti e de arte nas ruas, recomendo se despir de preconceitos e conhecer as histórias de quem está nessa. E para isso, desde 1998, a Destroy tem prestado um excelente serviço.
Entre seus relatos divulgados, é possível perceber que o graffiti é um caminho a ser seguido dentro do ambiente de quem nasce estigmatizado por uma sociedade classista e racista. É uma forma de expressão por parte daqueles que cresceram levando geral da polícia, tendo que se acostumar com uma repressão naturalizada inclusive pelos meios de comunicação tradicional.
Artigo sobre a cervejaria Xamã
E o que a Destroy e a divulgação da arte das ruas tem a ver com cervejas artesanais? A resposta está no fato de que nessa publicação, há espaço para um breve relato da história da Cervejaria Xamã orgulhosamente assinada por mim. Depois que conheci não só suas cervejas, como também sua história e cheguei a apresentá-la aqui no Blog, o trio cervejeiro responsável por ela me convidou para essa nobre tarefa.
Com a experiência de uma cervejaria que sempre desenvolveu suas produções através de parcerias com coletivos culturais, quem sabe em breve não teremos outra cerva deles que busque dar sabor à arte do graffiti. Aguardemos...
Enquanto isso, vale a pena conhecer a Destroy, disponível em seis locais em Curitiba (ver na sua página no Facebook), incluindo simpática Joaquim Livros & Discos (rua Alfredo Bufren, 51, no centro de Curitiba), que sempre priorizou a divulgação de cultura na cidade, inclusive com bate-papos com artistas dos mais diversos, como com o André Abujamra há uns meses (quando estive presente). Vale a pena passar lá para conhecer não só a Livraria, mas adquirir a Destroy e outras publicações referentes ao tema, como o livro "Espelho da Cidade", organizado por Cimples, um dos responsáveis pela Destroy.
Aliás, a Joaquim Livros & Discos passou também a fazer suas próprias cervejas, ainda que edição bem limitada. Presenteado pela Carol, minha esposa, estou com uma Session IPA na geladeira aguardando para ser degustada em breve. Assim que tomá-la, divulgarei aqui. Mas boa coisa deve ser...
Recentemente tive a oportunidade de assistir um show de Dona Onete, cantora paraense de carimbó chamegado. Trata-se de uma professora de história aposentada descoberta pelo grupo Coletivo Rádio Cipó, quando já tinha mais de 60 anos. Passou então a ser protagonista de músicas e gravou seu primeiro álbum em 2012, com 72 anos e agora, aos 77, está no auge da carreira após gravar o excelente disco Banzeiro. Pegando as palavras do Xico Sá, "moçada, mire-se no exemplo de Dona Onete, 77 anos de peleja, ciência da vida e carimbó chamegado".
Para mim, Dona Onete foi mais uma gratíssima surpresa cultural vinda do Pará, que se junta a artistas como Felipe Cordeiro, que no clipe da música Legal e Ilegal ironiza a cerveja de "flocos de milho" (ver clipe abaixo), só para citar alguns mais conhecidos músicos que atualmente tem contribuído para confirmar o momento extremamente feliz que atravessa esse estado nortista do país.
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Opa...pera lá...esse blog não é destinado à divulgação de cervejas artesanais? Por que estaria eu aqui falando de música paraense além do clipe de Felipe Cordeiro ou da letra suingada de "Louco Desejo" da Dona Onete?
Pois é, no caso, a música paraense entrou aqui como introdução à descoberta pessoal não só em relação à música, mas também à cerveja, que fiz há exatos dois anos quando estive pela primeira vez em Belém do Pará.
Até então, minha referência de cerveja paraense era a velha Cerpa, fundada em 1966 por um imigrante alemão. Lembro que nos anos 1980, observava meu pai elogiando aquelas pequenas garrafas de Cerpa Export, uma cerveja denominada "premium" obtida a duras custas que, naquela época, se diferenciava das Brahmas e Artacticas que dominavam o mercado. Mas eram outros tempos...
Chegando em Belém, descobri que o universo cervejeiro de lá vai muito além das Cerpas (sem desmerecê-las). Na moderna Estação das Docas, ao lado do famoso mercado de produtos e especiarias do Ver-o-peso, há uma microcervejaria que comprova que a revolução artesanal em andamento chegou também até a região amazônica.Trata-se da Amazon Beer, nome escolhido a dedo com alto poder de marketing. Junto com alguns de seus tanque de fermentação funciona um bar com um visual incrível e ambiente acolhedor.
Segundo o empresário responsável pela Amazon Beer, Arlindo Guimarães, o projeto teve início em 2000, quando ele percebeu o sucesso desse movimento de cervejas artesanais nos EUA e viu exemplos bem sucedidos em diferentes pontos do Brasil como a Dado Bier e a Via Continental. Diante desse cenário, resolveu levar essa experiência para Belém, apostando em produzir cervejas não só com qualidade e diversidade das artesanais, mas introduzindo frutos, raízes e ingredientes regionais da Amazônia, personalizando suas cervejas.
IPA Cumaru, dugustada na Estação das Docas (Belém, PA)
Em toda estadia em Belém, experimentei diversos estilos de cervejas por lá e ainda trouxe algumas garrafas para degustar em casa. O site da Amazon Beer divulga sete estilos disponíveis: Stout Açaí, River Lager, Forest Pilsen, Forest Bacuri, Witbier Taperebá, Red Ale Priprioca, Cupulate Porter e Imperial IPA.
Na época eu experimentei ainda a IPA Cumaru (que infelizmente parece que foi descontinuada). Tratava-se de uma IPA com adição de Cumaru, uma substância conhecida como "baunilha da Amazônia" que combina bem com o amargor caraterístico de uma IPA. Tinha uma coloração entre o dourado e o âmbar, límpida, e contava ainda com um leve aroma caramelado (ver foto acima).
A Stout Açai também surpreendeu ao combinar bem o energético açaí com o malte tostado característico do estilo, resultando em uma cerveja que embora fosse forte, com 7,2 de teor alcóolico, caia bem até mesmo no calor paraense. Em 2014 recebeu o título de cerveja do ano no Festival de Blumenau.
Witbier Taperebá, trazida para Curitiba
Destaco ainda a Witbier Taperebá, famoso estilo belga de cerveja de trigo com notas cítricas e condimentadas, que, no caso da Amazon Bier, acresceta Taperebá, conhecido também como Cajá, aumentando a sua refrescância, Esta cerveja ganhou medalha de ouro no South Beer Cup, além de ter faturado medalha de bronze na categoria Fruit Wheat Beer no V Concurso Brasileiro de Cerveja disputado em Blumenau.
Nesse importante concurso, a Amazon Beer ainda recebeu medalha de prata na categoria French & Belgian Style Saison pela Saison Puxuri, desenvolvida em parceria com Pete Slosberg, Fal Allen (da Anderson Valley) e Sean Paxton com adição de Puxuri, uma especiaria da região amazônica. Essa experiência foi registrada em um vídeo, que relata um pouco sobre a história da Amazon Beer:
Outra medalha de prata obtida foi coma Forest Bacuri, no estilo Brazilian Beer com frutas. Com todo esse sucesso, atualmente conseguem levar suas cervejas para outros cantos do país. Em Curitiba, por exemplo, a Bodebrown (cervejaria que merece postagem específica), disponibiliza as preciosidades da Amazon Beer em sua loja.
Enfim, percebe-se que assim como na música, Belém do Pará tem nos brindado com excelentes cervejas artesanais, graças às inovações da Amazon Beer. Afinal, Belém é muito mais do que flocos de milho com cerveja no velho punk, como diria Felipe Cordeiro.
Nos últimos anos, com a propagação cada vez maior do hábito de tomar cerveja artesanal, incluindo desde aquelas caseiras, feitas na panela por apaixonados amadores, até as microcervejarias, que ocupam cada vez mais espaço nos bares e mercados, ampliando consideravelmente a oferta em termos de estilos e qualidade, percebe-se que há algo a mais do que simplesmente a bebida em si.
Trata-se de uma cultura cervejeira. E isso envolve curso, encontros, eventos, festivais, enfim...uma série de atividades ligadas diretamente à cerveja artesanal que vai muito além do seu consumo propriamente dito. Em Curitiba, por exemplo, só nesse final de semana, há dois eventos relacionados a isso.
Cartaz do Concurso [2]
Um deles é o IV Concurso Sul Brasileiro de Cerveja, organizado em conjunto pelas Associações de Cervejeiros Artesanais (ACervAs) dos três estados do sul do Brasil (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). Nesse concurso serão avaliadas até 400 amostras de cervejas caseiras de diferentes estilos por cerca de 30 juízes BJCP e 30 auxiliares. Aliás, em Curitiba um Grupo de Estudos tem se reunido regularmente com a missão de aprimorar os julgamentos e ampliar o número de juízes BJCP. Imagino que em outros municípios, algo semelhante tem ocorrido. Esse assunto merecerá ainda uma postagem específica [1].
O outro evento, gratuito, ocorre hoje (29/04) no Museu Oscar Niemayer (MON): The Brazilian Way, Promovido pela Way Beer, são oferecidos rótulos de cervejas especiais preparadas com ingredientes regionais, juntamente com música e comidas tipicamente nacionais. Além de rótulos mais temáticos como a Sour Me Not - Goiaba, a Sour Me Not - Acerola, a JabutiGose e a Coffe Brown Ale; a Way ainda vai disponibilizar toda sua gama de cervejas que se destacaram ao longo dos seis anos de história. Em breve, a Way merecerá uma postagem específica nesse blog. A má notícia é que os ingressos estão esgotados.
Cartaz de Divulgação do The Brazilian Way [3]
E os eventos se sucedem. No próximo final de semana, dia 7 de maio, Campagnolo, da Cervejaria Turbinada (também já relatada aqui) estará no restaurante Terra Preta, em Colombo na Região Metropolitana de Curitiba, para apresentar além de sua cerveja e hidromel, uma receita típica de porco no rolete, visando harmonizar com suas cervejas especiais.
O que ocorre em Curitiba, se repete em outros cantos do país. Em Campinas, por exemplo, a Toca da Mangava, tema na postagem anterior, é um perfeito retrato desse momento. Embora eu tivesse denominado corretamente que se tratava de um Centro de Cultura Cervejeira, acabei não aprofundando esse importante tema. De fato, não é apenas um local onde se faz e toma boas cervejas artesanais, mas há uma série de outras atividades relacionadas à propagação da revolução da cerveja artesanal.
Alfeu Júlio monitorando uma visita técnica à Toca da Mangava
Uma dessas atividades são cursos, como o de Produção de Cerveja Caseira, ministrado pelo Alfeu Julio, com três dias de duração ou o Workshop de introdução ao mundo das cerveja artesanal, com três horas de duração.
No próximo sábado, dia 6 de maio, será organizado um encontro com Matheus Aredes, da Escola Superior de Cerveja e Malte (ESCM) de Blumenau tendo como tema lúpulos. Além disso, eventualmente convidam colegas cervejeiros de diversos cantos do país para falarem sobre suas produções em um evento batizado como "Grandes Micro Cervejarias do Brasil" que invariavelmente acaba com uma mini degustação das cervejas do convidado. Já estiveram presente a Bamberg (Votorantim), Dama (Piracicaba), Dortmund (Serra Negra), Sauber (Mogi Mirim) e Votus (Diadema).
Por fim, ainda existe o um grupo de cervejeiro caseiros que se reúnem uma vez por mês na Toca da Mangava para compartilhar suas criações cervejeiras, tal como eventos da ACervA-PR que ocorrem em Curitiba. Com cerca de 50 inscritos (média de uns 12 por encontro), esses eventos são bem descontraídos e costumam terminar com um racha de pizza entre os participantes.
Tudo isso evidencia como as cervejas artesanais têm, de fato, representado uma verdadeira revolução não apenas na qualidade da cerveja em si, mas sim em hábitos e costumes entre os seus cada vez mais fieis adeptos. Não é exagero falarmos em cultura cervejeira diante do atual contexto.
Notsa: [1] Beer Judge Certification Program (BJCP) é uma entidade sem fins lucrativos, fundada em 1985 nos EUA responsável por certificar e qualificar julgadores de cerveja através de exames e monitoramento. Entre um dos principais objetivos está o desenvolvimento de ferramentas, métodos e processos padronizados para uma avaliação, classificação e feedback de cerveja, hidromel e cidra. [2] Imagem obtida no Boletim Informativo Acerva Paranaense: https://www.yumpu.com/pt/document/view/58150384/boletim-informativo-acervapr-abril-2017 [3] Imagem obtida em https://www.facebook.com/events/2020669608160455/
Body and Soul da Toca da Mangava, minha preferida no dia.
No dia 1º de abril, juntamente com grandes amigos, tive a oportunidade de conhecer a Toca da Mangava, um Centro de Cultura Cervejeira (como seus proprietários gostam de definir) em Campinas (SP), mais especificamente no distrito de Sousas. Lugar rústico e extremamente agradável, a cervejaria funciona na mesma casa em que são feitas as cervejas. Um dos seus proprietários, o engenheiro de alimentos Alfeu Julio nos guiou por uma visita pelas instalações, nos apresentando orgulhosamente não só o processo de brassagem das cervejas, mas também contando um pouco da sua história.
Alfeu Júlio apresentando sua microcervejaria
O nome Toca da Mangava vem do fato de que logo nas primeiras brassagens, tiveram que conviver com uma vespa mangava (conhecida também como mamangava), provavelmente atraída pelo cheiro doce exalado no processo de mosturação. Intrigados, os cervejeiros descobriram que a toca da Mangava ficava exatamente no local escolhido para fazer a cerveja. E descobriram que ainda que a Mangava tem, como característica, o fato de que se trata de um inseto que voa sem que tenha características aerodinâmicas para isso (sua cabeça é muito grande e as asas muito pequenas) [1]. Resolveram adotar o nome então, utilizando a superação da vespa como inspiração para eles.
Naquela ocasião, a Toca da Mangava estava lançando a Mr. Rabbit, uma Robust Porter com cacau. De modo geral, a denominação do estilo Porter (carregador em inglês) tem sua origem no século XVIII quando Ralph Harwood, proprietário de uma antiga cervejaria em um bairro operário de Londres resolveu criar uma cerveja bastante robusta para alimentar os carregadores que ali viviam. Com sabor moderadamente forte, a presença de cacau casou bem com malte queimado, dando à cerveja uma aparência bem escura e uma espuma bege. Quem tiver interesse em conhecer, nesse final de semana (de 21 a 23 de abril), a Toca da Mangava está participando do Festival Cultura Cervejeira em Campinas.
Mr. Rabbit teve seu nome inspirado em uma canção. Trata-se de uma música folk que foi brilhantemente gravada em 2002 por Paul Westerberg, no álbum Stereo. Ex-vocalista dos Replacements, banda de punk rock dos anos 1980 de Minneapolis, EUA, Paul Westerberg fez um arranjo bem consistente a essa canção, agora imortalizada na cerveja.
Assim como a Mr. Rabbit, lançada naquela ocasião, as demais cervejas feitas na Toca da Mangava têm seus nomes de batismo inspirados em canções (inclusive tem uma lista no Spotify para que possamos escutar suas cervas - procurem a playlist "TOCA Inspirações"). Aproveitando a opção que o cardápio dispunha de uma degustação geral, experimentamos as outras cinco cervejas, começando pela Move, designada como sport beer devido à sua leveza e baixo teor alcóolico, que leva o nome de um clássico do jazz de Denzil Best, imortalizada por Miles Davis.
As outras quatro cervejas, que fazem parte do portfólio fixo, são as seguintes:
Pretty Woman - um blonde ale que homenageia esse rock de Roy Orbison dos anos 1960 (e regravado por vários outros, incluindo Van Halen);
Summertime, a APA bem assertiva, da escola americana
Body & Soul - uma belgian blond ale (a que mais apreciei no dia) que presta justa homenagem a esse clássico do jazz, conhecido tanto pela interpretação de Sarah Vaughan, como também por um dueto espetacular de Tony Bennett com Amy Winehouse (vale a pena assistir no Youtube, de preferência tomando a cerveja)
Summertime - uma APA com sabor bem assertivo. Uma das melhores canções de George Gershwin, tantas vezes regravadas por vozes das mais diversas (eu, particularmente, tenho a interpretação da Janis Joplin como uma das melhores músicas da história).
Black Bird - uma Porter, batizada em homenagem a uma das mais belas composições do Paul McCartney, que teve como inspiração os conflitos raciais da década de 1960 nos EUA.
Toda essa relação da cervejas da Toca da Mangava com a música é algo natural. Seu mestre cervejeiro, Alfeu Julio, tocava cavaquinho e fazia vocal no grupo Bons Tempos, um excelente conjunto de samba de raiz, Em 2005, o Bons Tempos gravou um excelente CD e DVD do espetáculo "Ary, o Brasileiro", baseado na obra de Ary Barroso. No Youtube é possível assistir um pouco o lado artístico desse cervejeiro: https://www.youtube.com/watch?v=SnAtpnGjtx4
Grupo Bons Tempos (Alfeu é o 4º da esquerda pra direita) [2]
Mais recentemente (em 2012), Alfeu voltou a subir aos palcos com o grupo Lá se Vão Meus Anéis (com outros dois integrantes do Bons Tempos), tocando clássicos do samba de raíz novamente.
Que Alfeu e seus sócios continuem inspirados por muito mais tempo para nos brindar com outras boas cervejas artesanais que celebrem a boa música.
Notas: [1] Informações repassadas por Alfeu Julio durante a visita guiada à fábrica, e que se encontram disponível no site oficial da Toca da Mangava.
[2] Foto obtida em http://www.blognarua.com.br/category/sem-categoria/page/15/. As demais fotos são de minha autoria.
Lenha, uma APA da Cervejaria Tábuas, degustada em Barão Geraldo
Passei grande parte da minha juventude em Campinas, mais especificamente no distrito de Barão Geraldo. Mais conhecido por sediar a Unicamp, nos anos 1980 e 90, Barão Geraldo tinha pouquíssimas opções para quem, como eu naquela época, quisesse sair à noite para encontrar amigos ou até mesmo para uma boa cerveja. Me recordo que um dos poucos bares que tinha chamava Sancho Pança, e servia cervejas comuns além de um excelente frango à passarinho. Posteriormente abriram outros espaços como o Bar do Coxinha (que existe até hoje) e o Pantannal. Mas as opçoes continuavam restritas e cerveja artesanal naquela época, nem pensar.
Em meados dos anos 1990, coincidentemente na época em que eu me mudei de lá, o cenário começou a mudar .Primeiro foi com o surgimento da Cervejaria Universitária, talvez uma das minhas primeiras experiências com relação à cerveja artesanal, que forneciam para churrascos em barris. Hoje, duas décadas depois, há diversos bares e restaurantes para todos os gostos e necessidades.
Foi nesse novo cenário que, quando retornei para lá há poucas semanas para visitas familiares, me deparei com uma cervejaria nova que, além de disponibilizar cervejas artesanais da melhor qualidade, ainda funciona como um centro de propagação da cultura do Growler com um espaço bem agradável de bar para beber no local. Trata-se da Cervejaria Tábuas.
Os cervejeiros Alexandre e Guilherme no Tap Room da Tábuas
Concebida por Guilherme Manganello e Alexandre Leme, dois jovens engenheiros de alimentos formados na Unicamp, a Cervejaria Tábuas teve sua origem logo após a formatura de ambos quando começaram a fazer cerveja caseira em 2012, já pensando em, algum dia, abrir a própria cervejaria.
O tempo foi passando e eles foram aprimorando a técnica de fazer cervejas. Fizeram cursos no Brasil e nos EUA, testaram mais de 300 novas receitas de cerveja caseiras até que resolveram se lançar oficialmente no mercado através da Tábuas no final de 2015.
A Cervejaria Tábuas, assim como algumas outras artesanais que conheço em Curitiba, é uma cervejaria cigana: não possui fábrica própria. Atualmente utilizam a estrutura da Cervejaria Hausen, em Araras, município perto de Campinas. O uso compartilhado de equipamento é uma forma interessante de viabilizar o negócio cervejeiro no seu início.
Os sócios cervejeiros da Tábuas optaram por investir em um espaço para distribuir suas cervejas, denominado Tap Room, inaugurado em 2016 no centro de Barão Geraldo. Felizes por retornarem para o local onde estiveram durante a faculdade, criaram um espaço que tem tudo a ver com o ambiente universitário: o tap room funciona em uma edícula muito bem decorada no final do terreno em área central de Barão Geraldo. Na trave, quando estive lá tinham duas IPAs (a Estaca e a Moita) e uma APA (Lenha), além de cervejas de outras microcervejarias paulistas. Eu aproveitei a ocasião e experimentei as três cervejas da Tábuas e saí muito satisfeito.
Agora acabaram de lançar a Seiva, uma Double Stout. Infelizmente quando estive lá ainda não tinha essa última que, pelas características do estilo (intensa, saborosa e com 7,6% de graduação alcóolica), combinará bem com o inverno, ainda que Campinas não faça muito frio como Curitiba.
Espaço da Cervejaria Tábuas, no centro de Barão Geral
O espaço na frente do Tap Room, além de ter parte destinada a food trucks, é preenchido por carretéis de cabo de energia na função de mesas, contribuindo para o clima descolado do local.
Além das cervejas próprias servidas nas torneiras como forma de chope, a Tábuas ainda vende acessórios da marca (copos, abridores, etc) e growlers. Eu mesmo aproveitei a ocasião para presentear meu pai com um growler de dois litros. Para quem, como ele, aprecia beber uma boa cerveja em casa e mora bem perto do local, imagino que esse presente será muito útil.
De acordo com seus sócios-cervejeiros, em breve vão contar ainda com crowlers, que são uma espécie de growler descartáveis em forma de lata de 1 litro. Aqui em Curitiba a cervejaria Way utiliza crowlers também com bastante saída.
Enfim, aproveite a ocasião, sentei um pouco numa das mesinhas agradáveis e fiquei curtindo a boa sensação de perceber que o local em que passei a juventude agora dispõe de uma excelente alternativa de cerveja caseira. Com grande satisfação, percebi que a cervejaria Tábuas tem tudo para se consolidar cada vez mais. Assim espero....
Copo de Estaca, uma IPA deliciosa da Tábuas degustada no local
American Barley Wine, da Cervejaria ELA, degustada em Curitiba
O recente episódio de assédio envolvendo o ator global José Mayer provocou debates e reações, mas sabe-se que é apenas a ponta do iceberg de uma cultura machista que se reproduz diariamente. Em 2016, pesquisa divulgada pela Organização Internacional de Combate à Pobreza Action Aid mostrou que 86% das mulheres no Brasil já sofreram assédio em público. Feminicídios como o que ocorreu em Campinas no réveillon desse ano são reflexo dessa sociedade. Isto torna-se ainda mais preocupante em um país cujo governo é constituído sem a presença de mulheres e com presidente que, em discurso oficial de 8 de março (de 2017, não de 1817), diz que o papel delas na economia é conferir preços em supermercados.
Todo esse quadro se reflete também na cultura cervejeira. Eu, assim como todos brasileiros da minha geração, cresci vendo propagandas de cervejas que objetificavam as mulheres. Seja na midia televisiva, seja em cartazes espalhados por bares, durante muito tempo (e algumas até hoje), as propagandas difundiam a imagem das mulheres como meros objetos de desejo, assim como a própria cerveja. Essa característica machista é retratada em um vídeo feito por alunos de uma faculdade em São Paulo para um trabalho de sociologia sobre a imagem da mulher na propaganda de cerveja: https://www.youtube.com/watch?v=7cVU_SEH8jQ&t=26s
Inconformadas com esse quadro atual, muitas mulheres estão se levantando contra isso de uma forma bem pró-ativa. Cansadas de ouvir frases como "bebe como homem", "mulher e cerveja? No máximo ajuda lavando as panelas", "moça, me vê um chope de mulher pra minha namorada" ou ainda "essa cerveja é boa pra mulher, é doce e levinha", um coletivo de mulheres se organizou e tratou de ingressar no universo cervejeiro da melhor forma: com a mão na massa, ou melhor dizendo, com a mão na brassagem, produzindo uma legítima cerveja artesanal denominada Empoderar, Libertar, Agir - ELA. Como disse Aline, uma de suas integrantes: "Falar sobre machismo e feminismo é muito amplo. Escolhemos, então, tratar dessas questões dentro da nossa realidade e a nossa realidade é o mundo da cerveja"[1]
Parte de trás do rótulo
Contando com cerca de 200 mulheres de todo Brasil, em meados de 2016 a Cervejaria ELA lançou sua primeira cerveja. Para contrapor ao clichê de que cerveja para mulher tem que ser levinha, a primeira cerveja delas foi uma American Barley Wine, um dos estilos mais fortes e encorpados. Optaram ainda pelo lúpulo australiano denominado Ella, que acrescenta certas notas florais e picantes. Como cervejeiras ciganas, a primeira brassagem foi feita na Cervejaria Dádiva, onde produziram 2000 litros,
Recentemente as cervejeiras da ELA estiveram em Curitiba, em um evento no Coletivo Alimentar (bar com uma proposta muito interessante) e lá pude conhecer um pouco a história delas, suas propostas e, de quebra, degustar a ELA American Barley Wine. Com alto teor alcóolico (10% de IBU), uma coloração âmbar opaca e sensação aveludada na boca, particularmente achei uma cerveja com muita personalidade, como pede o estilo.
O rótulo roxo, bem elaborado, inclui informações gerais sobre os objetivos do coletivo, esclarecendo que transcende a elaboração da cerveja: "ELA é uma cerveja-voz. Voz sonora, alta e feminina". A garrafa vem ainda embrulhada em um pacote de papel (daqueles de padaria), com frases machistas que elas escutaram durante o processo de elaboração da cerveja. E tem gente que ainda acha "feminismo é vitimização" (uma das frases no pacote).
Pacote da ELA, com as frases machistas
Por fim, como a Cervejaria ELA é uma entidade sem fins lucrativos, o lucro da American Barley Wine foi todo convertido para a Artemis, uma ONG que atua no combate à violência contra a mulher. Vale a pena conhecer: www.artemis.org.br/historia
Em breve darão início à segunda brassagem em uma cervejaria de Porto Alegre. Estou ansioso não só pela cerveja em si, mas com a continuidade desse projeto tão interessante. A resposta delas ao machismo não só no ambiente cervejeiro, mas na sociedade como um todo, não poderia ser mais assertiva. Que sirva de inspiração para que cada vez mais mulheres ocupem também seu espaço nas cervejarias.
O
gosto pelas cervejas artesanais despertou em mim a vontade de arriscar também a
produzi-la. Em 2015, eu e alguns amigos (Alexandre, Armando, Mateus e
Roni – e Maurício posteriormente), decidimos que era hora de nos arriscarmos
nessa seara e produzirmos nossa própria cerva, escolhendo inclusive o tipo
dela.
Entretanto, tínhamos receio de que, passada a empolgação inicial, desistíssemos de continuar a produção. Foi então que nos deparamos com uma ótima opção para nosso caso: lugares que ofereciam todos os insumos e equipamentos necessários, além de um "professor". Uma espécie de escola-cervejeira. Entre a comodidade de termos tudo
preparado e ainda contarmos com um tutor cervejeiro de um lado, e todo o
desafio e dificuldade que teríamos (além do investimento) do outro lado, acabamos optando pela
alternativa mais fácil.
Talvez
a maior dificuldade nesse primeiro momento tenha sido a escolha do nome que daríamos a nossa cerveja: depois
de semanas de debates, acabamos aceitando a sugestão de uma das
esposas e homenageando Mujica, ex-presidente uruguaio que refletia bem o nosso
espírito.
Eu e meus amigos responsáveis pela Mujica
A
primeira leva da Mujica, uma AIPA (American India Pale Ale) com dry hoppping para caprichar no aroma, foi feita na Hop’n Roll, famoso bar
cervejeiro com temático rock em Curitiba, que oferece para seus clientes essa ótima alternativa de elaborar a própria cerveja. Para que a brassagem não demorasse muito tempo, na Hop’n Roll
utilizam o processo conhecido como Brew in a Bag. Esse método poupa muito tempo
do processo de brassagem e, embora possa ter um pouco menos de rendimento,
acaba facilitando ainda mais o processo.
Com todo esse apoio, o resultado foi melhor do que esperávamos: a Mujica AIPA apresentou muito aroma, com notas cíitricas e de maracujá. Diante do resultado, decidimos continuar nossa aventura cervejeira.
Para
a segunda e terceira brassagem, optamos por conhecer um outro espaço que tinha
acabado de abrir (em 2015). Tratava-se da Beermind, uma espécie de oficina cervejeira em um espaço bem
amplo que conta com toda a facilidade para quem, como a gente naquela
época, queria fazer do processo de produção de cerveja, um momento de lazer.
Toda a orientação e comodidade encontrada me deixou curioso sobre a história daquele lugar, já que um dos assuntos que mais me interessa é a história por trás dos
diferentes atores que têm contribuído com a verdadeira revolução da cerveja
artesanal em curso.
Richard na brassagem na Beermind
No
caso da Beermind, foi preciso retroceder 10 anos para desvendar suas origens,
quando Richard Budal da Costa (um dos irmãos fundadores), em 2005, partiu para fazer MBA em uma pequena
cidade perto Clevenlad, Ohio, nos EUA. Enquanto dedicava grande
parte do seu tempo para os estudos, conheceu um vizinho que tinha como hobby fabricar sua própria
cerveja em casa. Curioso, Richard resolveu conhecer esse processo e aprender também.
Embora
não fosse como hoje, naquela época já pipocavam em diversos cantos dos EUA
jovens se arriscando no processo de brassagem. Além disso, já existiam diversas microcervejarias, como o caso da Great Lakes, de Cleveland, que Richard passou apreciar. Ele foi se aprofundando no assunto e, em pouco tempo, começou a fazer suas cervejas no pouco tempo livre que dispunha.
Nem o pequeno espaço disponível em uma cozinha de apartamento foi suficiente
para diminuir seu entusiasmo inicial.
Finalizado
o MBA, retornou ao Brasil e conseguiu um emprego na sua área
profissional. Mas embora tenha deixado nos EUA todos os equipamentos necessários
para fazer cerveja, aquela vontade de continuar sua produção caseira
de cervejas permaneceu e mesmo diante de maior dificuldade em encontrar insumos e material necessário,
conseguiu retomar a fabricação das cervas para consumo próprio.
O
tempo foi passando, Richard fazendo suas cervejas e foi percebendo que, embora muitas pessoas se animassem para também ingressarem nessa atividade, assim que passava a
empolgação inicial, desistiam, vencidos não diante não só do trabalho que dava para o
processo de produção em si, mas principalmente pelo empenho necessário para organizar e limpar tudo
assim que o trabalho tivesse, aparentemente, concluído.
Foi então que Richard e João (seu irmão) tiveram a ideia de criar um espaço que funcionasse como uma
espécie de escola-cervejeira, destinado fundamentalmente àqueles que quisessem
fazer a própria cerveja sem a necessidade de adquirir o equipamento e tampouco,
cuidar da organização. Nascia a Beermind.
Processo de definição da receita da cerveja
Para
a elaboração da receita de cada frequentador, a Beermind (assim como a Hop’n Roll e outros tantos
cervejeiros caseiros) utiliza o programa Beer Smith II, que permite a livre escolha de diversas características da cerveja a ser produzida (cor,
amargor, graduação alcóolica, estilo, etc.) para definição da receita. E foi
justamente nesse espaço, amplo, bem estruturado e organizado, com todos os
insumos já devidamente organizados, que pudemos fazer as outras duas outras versões da
Mujca com mudanças dos seus estilos.
.
Ou seja, sou testemunha do papel importante desempenhado por essas espécies de escolas-cervejeiras na difusão da cultura cervejeira, pelo menos em Curitiba. Com locais como essas escolas-cervejeiras fica muito fácil ingressar no mundo das cervejas artesanais. Os apaixonados por essas cervas agradecem.