sábado, 8 de abril de 2017

Porque lugar de mulher é onde ELA quiser...

American Barley Wine, da Cervejaria ELA, degustada em Curitiba

O recente episódio de assédio envolvendo o ator global José Mayer provocou debates e reações, mas sabe-se que é apenas a ponta do iceberg de uma cultura machista que se reproduz diariamente. Em 2016, pesquisa divulgada pela Organização Internacional de Combate à Pobreza Action Aid mostrou que 86% das mulheres no Brasil já sofreram assédio em público. Feminicídios como o que ocorreu em Campinas no réveillon desse ano são reflexo dessa sociedade. Isto torna-se ainda mais preocupante em um país cujo governo é constituído sem a presença de mulheres e com presidente que, em discurso oficial de 8 de março (de 2017, não de 1817), diz que o papel delas na economia é conferir preços em supermercados.


Todo esse quadro se reflete também na cultura cervejeira. Eu, assim como todos brasileiros da minha geração, cresci vendo propagandas de cervejas que objetificavam as mulheres. Seja na midia televisiva, seja em cartazes espalhados por bares, durante muito tempo (e algumas até hoje), as propagandas difundiam a imagem das mulheres como meros objetos de desejo, assim como a própria cerveja. Essa característica machista é retratada em um vídeo feito por alunos de uma faculdade em São Paulo para um trabalho de sociologia sobre a imagem da mulher na propaganda de cerveja:  https://www.youtube.com/watch?v=7cVU_SEH8jQ&t=26s


Inconformadas com esse quadro atual, muitas mulheres estão se levantando contra isso de uma forma bem pró-ativa. Cansadas de ouvir frases como "bebe como homem", "mulher e cerveja? No máximo ajuda lavando as panelas", "moça, me vê um chope de mulher pra minha namorada"  ou ainda "essa cerveja é boa pra mulher, é doce e levinha", um coletivo de mulheres se organizou e tratou de ingressar no universo cervejeiro da melhor forma: com a mão na massa, ou melhor dizendo, com a mão na brassagem, produzindo uma legítima cerveja artesanal denominada Empoderar, Libertar, Agir - ELA. Como disse Aline, uma de suas integrantes: "Falar sobre machismo e feminismo é muito amplo. Escolhemos, então, tratar dessas questões dentro da nossa realidade e a nossa realidade é o mundo da cerveja"[1]


Parte de trás do rótulo
Contando com cerca de 200 mulheres de todo Brasil, em meados de 2016 a Cervejaria ELA lançou sua primeira cerveja. Para contrapor ao clichê de que cerveja para mulher tem que ser levinha, a primeira cerveja delas foi uma American Barley Wine, um dos estilos mais fortes e encorpados. Optaram ainda pelo lúpulo australiano denominado Ella, que acrescenta certas notas florais e picantes. Como cervejeiras ciganas, a primeira brassagem foi feita na Cervejaria Dádiva, onde produziram 2000 litros, 

Recentemente as cervejeiras da ELA estiveram em Curitiba, em um evento no Coletivo Alimentar (bar com uma proposta muito interessante) e lá pude conhecer um pouco a história delas, suas propostas e, de quebra, degustar a ELA American Barley Wine. Com alto teor alcóolico (10% de IBU), uma coloração âmbar opaca e sensação aveludada na boca, particularmente achei uma cerveja com muita personalidade, como pede o estilo. 


O rótulo roxo, bem elaborado, inclui informações gerais sobre os objetivos do coletivo, esclarecendo que transcende a elaboração da cerveja: "ELA é uma cerveja-voz. Voz sonora, alta e feminina". A garrafa vem ainda embrulhada em um pacote de papel (daqueles de padaria), com frases machistas que elas escutaram durante o processo de elaboração da cerveja. E tem gente que ainda acha "feminismo é vitimização" (uma das frases no pacote).

Pacote da ELA, com as frases machistas 


Por fim, como a Cervejaria ELA é uma entidade sem fins lucrativos, o lucro da American Barley Wine foi todo convertido para a Artemis, uma ONG que atua no combate à violência contra a mulher. Vale a pena conhecer: www.artemis.org.br/historia


Em breve darão início à segunda brassagem em uma cervejaria de Porto Alegre. Estou ansioso não só pela cerveja em si, mas com a continuidade desse projeto tão interessante. A resposta delas ao machismo não só no ambiente cervejeiro, mas na sociedade como um todo, não poderia ser mais assertiva. Que sirva de inspiração para que cada vez mais mulheres ocupem também seu espaço nas cervejarias.  

Divulgação da ELA no Coletivo Alimentar. 


Notas:
Para ir mais longe: https://cervejaporelas.tumblr.com/, 
[1] http://revistadacerveja.com.br/a-mobilizacao-do-ela-contra-o-machismo-no-mercado-cervejeiro/



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