sexta-feira, 17 de março de 2017

Um pouco de história: a concorrência desleal com as grandes cervejarias

Foto da Revista O Malho, de 3/11/1917, retrantando romeiros com suas cervejas
(fonte: livro de Teresa C. de N. Marques aqui citado, originalmente da Hemerteca Digital Brasileira)

De acordo com reportagem do jornal Valor de fevereiro de 2016, o mercado de cervejas artesanais no Brasil vem apresentando um forte crescimento anual, da ordem de 30% a 40% (http://www.valor.com.br/cultura/blue-chip/4418136/cerveja-artesanal-nao-e-moda). Esse cenário pode ser facilmente constatado nas principais cidades brasileiras nos últimos 10 ou 15 anos, principalmente ao nos depararmos com a quantidade crescente de bares e cervejarias destinados às artesanais.

Mas esse cenário favorável não deixa de enfrentar obstáculos, principalmente por parte dos grandes fabricantes, hoje conglomerados multinacionais, que já deram mostras de que estão sentindo o crescimento das artesanais. Uma das formas que a Ambev tem atuado para reagir a esse crescimento é através de fabricação de cervejas que possam disputar o mercado com as artesanais, com preços tão competitivos que chegam a levantar suspeita de que estejam abaixo do custo de modo predatório.

Livro da historiadora Teresa Cristina de N. Marques
Interessante que esses obstáculos para as artesanais não é novidade. No bem documentado livro “A Cerveja e a Cidade do Rio de Janeiro - de 1888 ao início dos anos 30” [1], a historiadora Teresa Cristina de Novaes Marques ilustra como, no inicio do século XX, a Brahma estava incomodada com a concorrência com as cervejarias pequenas de alta fermentação que estavam incorporadas ao cotidiano da população trabalhadora da cidade, como a Guarda Velha e a Santa Maria. 

Uma das armas que a Brahma utilizava para combater o crescimento dessas pequenas cervejarias era condicionando a comercialização de suas cervejas em bares que contraíam empréstimos a cláusulas de exclusividade estabelecidas no contrato. Além disso, tal como agora, a Brahma passou a fabricar alguns tipos de cervejas mais populares, com menores preços para concorrer diretamente com essas pequenas cervejarias. Nesse sentido, passou a produzir tanto aquelas de baixa fermentação (lager), tal como a Ipiranga, registrada em janeiro de 1900; como a ABC, registrada em 1905, de alta fermentação (ale) mas pasteurizada, diferentemente daquelas das cervejarias menores.

Além disso, como parte da estratégia de eliminar as pequenas cervejarias e ampliar o domínio sobre o mercado, a Brahma se associou ao empresário da noite Pascoal Segreto para que no restaurante do seu teatro fosse vendida exclusivamente as suas cervejas ABC e a Guarany (produzida desde 1902), limitando ainda mais o espaço para as concorrentes menores, prática que ao longo do tempo se tornou corriqueira entre as grandes indústrias cervejeiras e os bares e restaurantes.

Outro obstáculo enfrentado pelas cervejarias menores era a forte campanha de jornais de grande circulação, como a Gazeta de Notícias  que passavam a questionar pequenas cervejarias de alta fermentação como a Santa Maria que produzia cerveja no fundo do salão e a vendia no salão principal. Em 1912, sob o título "A fábrica de de cerveja Santa Maria: horrorosa imundice; nos domínios das ratazanas", a Gazeta publicou reportagem criticando as condições de higiene do local e o perfil dos frequentadores, desdenhando inclusive do seu paladar e do gosto por tremoços (MARQUE, T.C.N, 2010). O ambiente descrito nas reportagens era típico das pequenas fábricas de cervejas de alta fermentação, que dispunham, no mesmo espaço da produção, um salão onde se bebia, jogava e comia, além de espaço para alguma atração musical eventualmente Esse local era frequentado por operários, imigrantes, brasileiros e até mesmo trabalhadores negros, cenário que torna mais fácil a compreensão do preconceito que enfrentavam.

Após a Santa Maria ter recebido apoio do Jornal do Comercio, que no dia seguinte teceu elogios à fábrica e tratou com mais benevolência seus frequentadores, a Gazeta  novamente veio à público fazer acusações, chegando a defender inclusive a necessidade de caçar a licença daquela cervejaria. Embora não houvesse qualquer evidência de ligação entre o jornal Gazeta de Notícias e a Brahma, era evidente que ambos estavam em campanha para depreciar as cervejarias de alta fermentação.

A resistência às campanhas difamatórias não era trivial, pois mesmo que esses pequenos cervejeiros mantivessem entidades associativas até certo ponto politicamente ativas, tinham poder limitado para influenciar, por exemplo, decisões de política fiscal, que muitas vezes as prejudicavam.

Diante desse contexto, fica mais fácil compreender porque demorou tanto tempo para que as artesanais conseguissem, de certa forma, romper com a ditadura das grandes indústrias cervejarias com suas American Standard Lager de menor qualidade. A luta nunca foi fácil. 


Nota: 
[1] Grande parte do que aqui reproduzi em termos históricos decorre do livro citado da historiadora Teresa C. de Novaes Marques, presente que ganhei de outra historiadora e grande amiga Gabriela Sampaio.

2 comentários:

  1. Olá Paulo, muito obrigada pelos comentários. Observo, apenas, duas dificuldades adicionais dos pequenos cervejeiros, que produziam mediante a alta fermentação: obter vasilhame e, assim, ampliar o alcance de seus produtos, sobreviver às recorrentes crises cambiais. Neste particular, os pequenos produtores não contavam com suporte financeiro de instituições bancárias e deviam absorver os custos imprevisíveis da matéria-prima importada e insubstituível. Assim sendo, os negócios com cerveja de alta fermentação viveram ciclos de surgimento, prosperidade e declínio, quando não foram adquiridos por alguma grande empresa.
    Abraços

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    1. Obrigado por sua valiosa contribuição, Cristina! De fato é isso mesmo.

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